Rito de passagem.


Eu perco o chão, o corte, a cesta, o caco. Eu perco a hora, a hera, o hall, o hiato. Eu perco o sono, o sopro, o soco, o saco. Só tenho sonho, o saldo, o susto, o sábado. Tenho a meta, a mancha, a mosca, o marco. Ganhei o título, a tela, a touca e o taco. Pego o ônibus, o oásis, o Outro e o oráculo. Só sou passado, parábola, pacato pacto. Fui solidão, silêncio, sutil simulacro. Hoje sou dada, data, deslize da capo*. Plantei sorriso, sistema, sirena e sisal. Colhi boicote, bemol**, beneplácito banal. Tracei o ontem, ornejo, omícron*** e odisseia. Fiz dezesseis, desonra, desídia e desígnio. Não sou letrada, loquaz, longínquo laticínio. Sou só do contra, do campo, do copo, da copa. Gritam remissa, remoque, retruco e revolta. Só sou Raíssa, refluxo,  refresco e escolta.

*Na teoria musical, “Da Capo” é a expressão italiana que designa quando a partirtura deve voltar ao início. Nesse texto, tem a função de sinalizar que os deslizes sempre estarão em um ciclo na vida do eu-lírico.
**Representa um acidente que abaixa meio tom a figura musical.
***A décima quinta letra do alfabeto grego.



E se a miopia fosse como a depressão?



De repente, você, que sempre regozijou uma saúde invejável, acorda sobressaltado com batidas ininterruptas que estremecem a sua porta. Antes mesmo de se por de pé, a porta abre e uma sombra turva é vista de lá. Você, que outrora gozava de uma visão de águia, esfrega os olhos por não conseguir definir quem lhe observa do outro lado. A sombra turva, aproximando-se cada vez mais, enfim se define frente aos seus olhos assustados. É sua esposa. Como não ter reconhecido aquela que lhe fora sempre tão fiel e amiga? Você não reconhece e se escandaliza com isso. Reclama aos deuses aquela infelicidade. Vai ao trabalho, mas evita fitar seus amigos, na aflição de não enxergá-los de longe. Confuso, esconde sua mais nova fraqueza. Não anda na rua com a mesma segurança, tampouco sente vontade de entregar-se aos esportes. Teme que a bola venha de encontro ao seu nariz antes de conseguir distingui-la. Evita saídas com os amigos e põe-se à margem social. Se não consegue distinguir quem se aproxima, por que sujeitar-se à vergonha de assumir sua deficiência diante de todos do seu convívio? Começa a remoer suas angústias a cada anoitecer. Já não reconhece sua esposa quando a vê de longe; sente-se fraco, impotente e é ferido em sua dignidade. Esconde sua condição, esforçando-se por demonstrar uma visão invejável para todos.
Certo dia, não estando suficientemente munido de desculpas, é descoberto em seus devaneios aflitos. Reconhecem que sua visão já não é mais tão saudável (você estremece entre as acusações; que horror, que blasfêmia!). “É um mal estar passageiro”, apressa-se logo a explicar, envergonhado, amuando-se. Fazem a temida recomendação: “Você precisa ir ao médico!” De repente, o chão se abre sob seus pés. “Ir ao médico? Não sou cego! Ainda enxergo!” Defende-se entre unhas e dentes. “Blasfêmia! Acusações sem fundamento!” Você se revolta. Não conhece ninguém que precisou ir ao oftalmologista; apenas os cegos vão. Não se equipararia a essa classe, ainda tem domínio sob sua visão, mesmo que imperfeita.
Por fim, é vencido pelo próprio sofrimento. Já não enxerga como antes e teme que realmente seja visitado pela cegueira. Sorrateiramente, esconde-se de seus amigos enquanto marca a consulta com o oftalmologista. Poupa-se das chacotas, evita o preconceito. Seus amigos certamente iriam rir da sua ida ao médico dos cegos, apontariam o indicador rente ao seu nariz. Mas já está feito, a consulta já está marcada.
Chega o grande dia. Você se prepara para visitar o primeiro oftalmologista da sua vida. Fantasia que tipo de místico encontrará do outro lado. Lembra-se do que cresceu ouvindo: de tanto cuidarem dos cegos, os próprios médicos perdiam a visão. Entra no consultório, cabisbaixo. Sente-se errado demais por estar ali. Responde quando é perguntado, confessa-lhe as mazelas, é examinado e espera entristecido pelo ultimato. Os dedos do médico dançam pelo teclado. Seu coração acelera. Ele abre a boca, por fim: “Você vai ter que usar óculos”.
“Óculos?! Que vergonha!” Todo o seu ser se afunda em tristeza. Sai do consultório tristíssimo enquanto carrega sua receita. Fora diagnosticado com miopia. Terá que tratar-se ainda por um bom tempo, quem sabe até pela vida inteira.
Compra seus óculos, vencido. Passa a ver tudo com mais nitidez. Com o melhoramento da visão, descobre que pessoas próximas também usam seus pares de óculos quando estão longe, mas retiram ao menor sinal de aproximação. Algumas, que você sempre julgou os poços da saúde, usam lentes de contato. Lentes de contato! Todo esse tempo grande parte da população ia e vinha entre consultórios oftalmológicos.
 Nas festas e encontros sociais, poucos assumem os óculos que têm. Usar óculos é um defeito que não é perpetuado na exuberância das noites. É feio, é vulgar, não combina com a vibe. Toda sua vida parece se abrir para uma nova descoberta: de cego e louco, todo mundo tem um pouco.
Felizmente, nossa sociedade já traz uma aceitação maior para quem usa óculos. Existem armações para cada ocasião, mil e uma tecnologias que tornam sua deficiência visual mais branda. O oftalmologista não é visto com tantos dogmas, nem você cogita deixar o trabalho se perceber uma falha na visão.
Por questões de estilo, os nomes foram trocados. Esse tempo todo a “miopia” era a depressão. A “cegueira” era a loucura e o “médico místico” era o psiquiatra. Quando tomados pela depressão, demoramos até notar que mesmo nossas paixões tornam-se indefinidas sob a turva presença dessa doença. Tememos a opinião dos que nos circundam, a impotência e a vergonha enchem o nosso peito. Somos fracos diante do preconceito. Pedir ajuda é de um esforço sem igual. Psiquiatras são, para nós, médicos de loucos que também foram tomados pela loucura. A medicação e a terapia tornam-se uma vergonha, um fardo que tentamos esconder demonstrando extroversão ou introversão em demasia. Aos poucos, percebemos que isso é mais comum do que poderíamos imaginar.
Muitos dos que nos rodeiam usam medicação, fazem terapia e sofrem nas mãos da mesma condição. Infelizmente, ainda existem muitos tabus que impedem que assumamos nossa situação, dando assim o primeiro passo para a melhora. Como a miopia, depressão tem tratamento e deve ser acompanhada por profissionais. Não é errado precisar de óculos. Precisar de tratamento psiquiátrico e psicológico também não deveria ser.

Raíssa Muniz
17 de agosto de 2014.


Entrevista com Camila Paier, escritora e blogueira gaúcha.

Hoje, 25 de julho, é o Dia Nacional do Escritor. Como forma de homenagear todos os novos e antigos escritores nacionais, trago aqui uma entrevista com Camila Paier, que escreve para o blog Calmila (por Camila Paier). Espero que gostem e conheçam os projetos e sonhos da Camila.





[RAÍSSA] – Quando surgiu o interesse pelo mundo literário? Você sempre escreveu? Quando despertou essa paixão?

[CAMILA] Comecei a escrever muito cedo. Na escolinha, lembro de ser a primeira a ler e, depois, escrever. Desde então, sempre criei historinhas na minha cabeça e fui uma adolescente que mais lia que saia por aí pra baladas. Aos 17 anos, comecei a escrever um diário, bem pessoal mesmo, anônimo. A coisa toda foi tomando uma dimensão que nem eu esperava e, quando vi, estavam me lendo. Na época, escrevia poemas também. Desde 2009, nunca mais parei, embora me dê umas férias vez que outra todo ano.

[RAÍSSA] – Em qual momento da sua vida achou necessária a criação de um blog para reunir seus textos? Como se deu esse processo, principalmente no que diz respeito à conquista de leitores?

[CAMILA] Como disse antes, foi tudo muito natural. Criei o blog pois era a fase do boom do mundo blogueiro, lia muitas coisas, tinha noções de HTML. Mas era algo totalmente caricato e onde eu reunia duas, três vezes por semana poemas meus e começos de crônicas sobre a dor e delícia de se ser jovenzinha (risos). Tudo sempre foi muito mais sensorial que premeditado na minha vida. Quis, fui lá, criei. Nada racionalizado. Os leitores foram aparecendo, os seguidores aumentando, e então comecei a divulgar mais nas mídias.

[RAÍSSA] – Há alguém em sua família ou em sua história que lhe influenciou para esse caminho da escrita? Se sim, quem?

[CAMILA] Minha mãe sempre foi uma leitora voraz. Ela quem me apresentou o mundo dos livros, dos cadernos, das palavras. Embora não escreva, é minha maior incentivadora. Meu avô, falecido em 2012, escrevia diários e poemas, coisa que só vim a saber ano passado. Tem familiar que acredite que herdei esse traço dele. Gostaria de perguntar, mas agora só quando eu for pro céu também.

[RAÍSSA] – Uma vez blogueira, como é conciliar a vida pessoal com as postagens?

[CAMILA] Difícil. Tenho fases. Enquanto solteira novamente, demorei pra me adaptar e desprender da opinião e da visão que novas pessoas poderiam ter sobre o que escrevo. Hoje, ando mais desencanada: quem me conhecer bem, me curtir e quiser estar comigo tem que entender que o que escrevo vai além de um alimento para o ego. As meninas que leem levam a sério. Se veem no que escrevo, compartilham, comentam entre si. É maravilhoso, mas complicado também.

[RAÍSSA] – A escrita é, muitas vezes, uma expressão do que vivemos. E quem acompanha seu blog vê muito disso em seus textos. Até que ponto suas experiências influenciam em seus escritos?
[CAMILA] Acredito que influenciam direta e indiretamente. Às vezes, escrevo algo e demoro mais de um ano para publicar. Noutras, logo depois de chegar em casa e ter vivenciado algo marcante, perco o sono e corro pro meu caderninho. Nem tudo que está postado ali é minha vida real, uma novela do cotidiano, coisa do tipo. Não. Tem vivências de amigas, imaginações minhas, pensamentos antigos. Tudo escrito, relido, às vezes aprimorado. Eu só posso falar daquilo que já senti, ainda que por osmose de quem eu quero bem.
[RAÍSSA] – Considera a escrita como um processo de “cura” dos entraves corriqueiros que todos nós vivemos?

[CAMILA] Já considerei. A escrita, para mim, é algo que organiza os pensamentos. Que mostra caminhos, que me elucida. Cura, hoje, só no divã da psicanalista. 

[RAÍSSA] – Hoje, como é o seu convívio com seus leitores? Classifica esse convívio como fundamental para o crescimento dos seus textos?

[CAMILA] É formidável. Eu adoro o contato com as meninas. É algo que me incentiva horrores a continuar com essa maluquice toda. E fundamental, claro. Quem não gosta de ver como humano e similar aquele que consegue falar pela gente? Quando comecei a escrever, achava incrível os escritores que se mantinham próximos e respondiam elogios, angústias, carinhos. Enquanto puder, quero levar desse jeito sim. Fiquei até mesmo amiga de muitas gurias que me leem.

[RAÍSSA] – Quais seus objetivos futuros, tanto profissionalmente quanto pessoalmente?

[CAMILA] Puxa, que complicado. Eu ando num momento de me descobrir. Posso dizer aqui que vou estar morando fora daqui um ano, cursando Letras lá fora e solteira. Podemos conversar novamente em julho de 2015 e é possível que eu esteja vivendo em Macapá, casada, grávida e trabalhando com Moda. Eu me apaixono pelas possibilidades no caminho. No momento, estou decidindo o que vai ser do meu segundo semestre desse ano.
[RAÍSSA] – Já considerou a opção de publicar um livro? Se sim, em qual segmento ele se concretizaria?

[CAMILA] Já, claro. Já tive contato com algumas editoras. Existem originais meus que ficaram em duas delas, inclusive. Hoje, acho que o faria em formato ebook primeiro e observaria as vendas, quem compraria, como ia ser. O complicado de se publicar sem ser de forma independente é que o escritor, quando não paga para ter o selo de alguma editora, recebe pouquíssimo sobre o próprio conteúdo. Caso eu venha o fazer no futuro seria de forma própria, independente. Para começar, acho que seria algo como um apanhado de minhas melhores crônicas. Um filtrão nas mais de 500 que já tenho espalhadas por aí.

[RAÍSSA] – Quais seus escritores preferidos? E em quais recebeu maior influência?

[CAMILA] Isso muda ao longo dos anos, né? Quem pressionou esse start em mim, lá em 2009, foram Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector. Peguei Perto do Coração Selvagem na biblioteca do colégio e me encantei. Até hoje, mesmo com aquela leva de gente cafona compartilhando frases bregas que os dois nem mesmo escreveram, são minhas maiores fontes de inspiração. Depois, vem Virginia Woolf, Ana Cristina César, Dorothy Parker, Marina Colasanti, Hilda Hilst. Sempre fui fascinada pela escrita feminina, não é à toa que é a ramificação que segui. Acho louvável que hoje se tenha tantas vozes femininas sendo disseminadas por aí.

[RAÍSSA] – Como se dá o seu processo de criação? Há algum “ritual” que efetue antes de escrever?
[CAMILA] Nada. Na maioria das vezes, sento e vomito as palavras. Detesto reler, é a parte mais dolorosa para mim. Mas eu sinto um tema, assunto ou mesmo, feeling puro e vou trabalhando aquilo na minha cabeça. Quando tenho um tempo e coloco algo legal pra escutar, me conecto com a intuição e a mágica vai acontecendo.
[RAÍSSA] – De onde tira inspiração para os seus textos?
[CAMILA] Do cotidiano. Das pessoas que eu quero bem. Das merdas que já vivi. Do som que eu escuto. De conversas que eu pego nos restaurantes, já que almoço sozinha. Daquilo que acho essencial passar à diante.

[RAÍSSA] – Se pudesse escolher uma obra já escrita para tomar como sua, qual obra seria?

[CAMILA] Eu sou apaixonada pela forma com que a Lionel Shriver escreve. Li Precisamos Falar Sobre o Kevin em três dias e, por mais que seja um livro pesado, é surreal como essa mulher sabe costurar os fatos, enfeitar com detalhes as situações, tornar real algo que poderia ser só do nosso imaginário. É um livro sensacional.

[RAÍSSA] – Hoje, o que representa a escrita em sua vida?

[CAMILA] Bem, é um dos meus alicerces. O tempo que fiquei sem escrever e criar esse ano me fez um tanto quanto infeliz. Desacreditada. Acho que, de novo embalada, eu poderia chamar de religião. Um ritual para a realização.


Camila, obrigada pela entrevista! 

Por excesso de amor.



Sofria aventuras tenazes a cada anoitecer. Se por criatividade ou descuido, pouco sabiam aqueles que tentavam constatar a causa de tantas crises sucessivas. As pernas, sempre entreabertas e para cima, viviam a frustrada tentativa de alcançar o céu sem tocar o teto do quarto. Os olhos eram inseguros, tão distantes quanto um porto inventado poderia ser naquele instante. Era rosada, muito embora permanecesse na inconstância de um ou dois toques pálidos por dia. Seus cabelos, encaracolados apenas nas pontas, traziam tantas lembranças quanto as cartas que ainda serviam de alimento para seres saprofágicos. Eram caminhos tortuosos, vias em desobstrução de um passado não tão distante. (E naquele instante, parecia tão próximo que poderia se fundir ao presente. As lembranças têm um poder assustador de locomoção. Nem sempre de momentos confortáveis – o aprendizado consiste na constrição por vias labirínticas.) Tinha olhos amendoados e um sorriso doce. O toque de suas mãos provocava uma inquieta sensação de ser transpassado por energias transcendentais. Tinha 4 anos, pernas ainda curtas e gordas e necessidades ainda em processo de adaptação — como é difícil narrar instintos corpóreos quando se quer tão efusivamente adentrar no que havia de mais bonito. Não posso dizer que algum dia tenha passado sem se questionar as razões que a trouxeram até ali. E como se questionava! Não só a si, mas a todos em volta.

Seus cabelos eram caminhos tortuosos, afinal. Seus olhos amendoados começaram a trazer lembranças que outros olhos âmbar tentavam esquecer. Seu sorriso doce trouxe sensações esquisitas que os olhos âmbar tentavam entender. Um mal-estar seguido de confusão e arrependimento. Quem poderia produzir vivências tão máculas sob um sorriso tão puro? Olhos âmbar produziam.

Se por culpa dos olhos, do sorriso doce, dos cabelos tortuosos ou das cartas que ainda serviam de alimento para a saprofagia, pouco poderia saber. Se era indiferente aos sorrisos, às amêndoas, à constrição por vias labirínticas ou aos papéis que ainda eram consumidos, pouco conseguia entender. Se trazia não apenas olhos âmbar, mas olhos âmbar que antecederam os olhos amendoados, com quase nada conseguia lidar. Seu sangue também corria naquelas pernas ainda curtas e gordas. Seus cabelos, lisos e comportados, desaprovavam os caminhos tortuosos que aqueles cabelos lhe traziam. Eram vias em desobstrução de um passado não tão distante, leitor. Eram não apenas lembranças, mas fatalidades. Advindos de um passado frouxo ou certeiro, pouco podia saber enquanto ainda tinha 4 anos, pernas ainda curtas e gordas e necessidades ainda em processo de adaptação. De onde nasceram as amêndoas que povoavam seus globos oculares, nem olhos âmbar conseguiam recordar.

Por não ter como apagar o que foi construído antes do toque do seu lápis, tentava reescrever sua história com rabiscos em lápis de cor e giz de cera. Por não entender nem nunca ter visto olhos amendoados como os seus, trazia a nítida impressão que também carregava olhos âmbar — eram os únicos que conhecia, eram os únicos que sabia pintar. Por não ter culpa — afinal, quem assumiria aquela culpa? — continuava rindo docemente para toda a imensidão âmbar que se estendia à sua frente. Por ser fruto do ilícito, inocentemente assumia seus genes aos se envaidecer por seus cabelos encaracolados como caminhos tortuosos. Por querer tocar o céu, continuava a jogar as pernas para cima, empalidecendo vez por outra por complicações respiratórias que os genes amendoados também traziam.

Os olhos âmbar observavam, enfim. Traziam não apenas lágrimas contidas, mas também uma atenção instigadora em ler cartas que serviam de alimento para seres saprofágicos. (Se toma pela atividade da saprofagia os olhos âmbar ou os vermes da gaveta, cabe ao observador a interpretação.) E chorava, escondia e superava. Não por ter aprendido a lidar com a saudade dos olhos amendoados que pareciam reviver naqueles 4 anos. E sorria, brincava e abraçava as pernas ainda curtas e gordas. O perturbador eram as noites, quando as amêndoas escureciam e tomavam as pálpebras por manto. Os olhos âmbar permaneciam vivos com suas cartas tomadas por seres saprofágicos. Enfim poderia chorar sem parecer afetada ou cansada por carregar pernas ainda curtas e gordas sem o amparo de olhos amendoados mais antigos. Não por fraqueza ou submissão; não por entrega ou martírio.


Por excesso de amor.

17 de julho de 2014.



Ponto final.




Desfiguro contra o próprio tempo
nesse pecaminoso intento:
escrevo.

Bastasse a folha que resguarda
ou o lápis que corre solto,
entrave algum tentaria amparo.

Bastassem as vidas,
tentativas pérfidas de me refazer em uma só;
bastasse o corpo,
desatino d’alma altiva.

O que me basta são as inspirações,
sussurros desvairados
d’algum mundo que me fez partir
sem despedida.

 O que me resta são os cortes, apagos,
o eterno resfolegar em pleno campo de centeio.
O correr a plenos pulmões,
rápido, frenético, torpe, inerte.

Enfim encontro o ponto.
 Ponto final seria a rima?
 De quantos contos faço o porto
Se nesse mar trago minha sina?



05/07/14



Um fragmento sobre escrevinhadores, personagens e sublimação.


Há uma leveza inócua que paira em minha existência. Não sei se algo parecido brilhou também na vida de escritores que admiro, mas vez por outra tendo a achar que sim, que faz parte da vida daqueles que tomam a escrita como rumo. A leveza, talvez não tão atraente ou compreensível para quem observa, se constitui em uma mania que adquiri durante os anos: o de eleger, vez por outra, uma pessoa do meu convívio para personagem dos meus escritos. Se é um aspecto doentio ou uma manifestação afetuosa, talvez só o tempo venha a dizer.

Obtendo ou não resposta, persisto com essa mania. Incurável, eu me atreveria a dizer. Também não sei exatamente qual a fórmula para a criação, mas por experiências passadas, já vi que não necessariamente a vítima precisa ter boa índole. Nem obrigatoriamente deve me trazer apenas sensações ruins. Talvez tentar fazer pão não do trigo, mas do joio, seja uma das graças que essa leveza me traz.
Foi assim que nasceram Petrine, Alice, Puma e outros tantos que permanecem ainda sem nome, ainda sem tanto apego da criadora. Espero que assim venham muitos outros para povoar tantas linhas descontínuas. Escrita é, acima de tudo, pura sublimação da realidade.

Raíssa Muniz
28/06/14

Ajude-me a lançar meu primeiro livro.

Para mais informações, clique aqui!



Como todo mundo já está cansado de saber, ser escritora sempre foi um sonho que marcou toda a minha vida. Aos 6 anos eu decidi que queria me aventurar escrevendo e comecei fazendo críticas literárias de livros infantis (para entregar a resenha e ganhar um novo). Aos 8 escrevi meu primeiro romance (ficção, universo fantástico) e publiquei na internet. Foi minha primeira grande recepção com um público. Consegui cerca de 400 leitores cadastrados (lia quem se cadastrava e tal) e por muito tempo esse foi o meu maior passatempo. Pois bem, escrevi outros livros. De vários outros temas. Livros que ainda hoje guardo no HD, na gaveta, no guarda-roupa... Procurei tentar escrever de tudo (crônica, crítica, conto, poesia, romance, peça teatral, reportagem, carta...) e descobri que eu AMO o que faço.

Hoje, 10 anos depois, da grande decisão, estou tentando dar um suspiro de coragem e começar a tirar da gaveta/HD/guarda-roupa os livros que eu já escrevi (e continuo escrevendo). Quero enfim lançar meu primeiro livro. Se fosse por minha vontade, teria lançado com 8 anos, quando escrevi o primeiro. Mas todo mundo sabe que "ser" escritor no Brasil é MUITO complicado, e no Piauí não é diferente. O fato é que eu, minha família e um grupo de amigos estamos organizando para que eu enfim possa realizar meu sonho. E começar a publicar tudo que já escrevi.

Calma, isso ainda não é o início do projeto! É só um convite feito com muito carinho para que mais pessoas possam conhecer um pouco do que eu faço e disponibilizo na internet (publico muito pouco aqui, na rede, porque já tive problemas com plágio em outros blogs). Quando o projeto começar, você vai poder ajudar comprando o livro e outros acessórios personalizados dele. Adiantando: vou utilizar o site Catarse para arrecadar, então terei uma meta ($$$$) para conseguir em até 60 dias e o site ficará com 13% do dinheiro. Eu só vou receber a quantia necessária se conseguir a meta. Caso contrário, todo mundo que ajudou recebe o dinheiro de volta e eu procuro uma outra forma de lançar (mas não vamos pensar no pior agora...).

Como você pode ajudar desde AGORA: divulgando essa imagem ou o blog entre seus amigos.

O convite foi feito! Conheçam a página do blog: 45 dias de reabilitação (por Raíssa Muniz) e visitem o link www.raissa-muniz.blogspot.com.br

Como eu já disse, ainda não é o estopim do projeto. Mas é uma prévia do que vai acontecer. Conto com a sua ajuda/divulgação. Quando a meta ($$$) do site abrir, vou precisar vender muitos livros para receber o dinheiro do custo.

Obrigada pela atenção! 


Eu já não sei dizer adeus.



Eu, ainda criança, conheci um fato maravilhoso sobre a existência humana: os mortos também voltam. Quando menos se espera, sem qualquer sinal de resignação. É uma situação que foge ao nosso controle.


Longe de qualquer conotação religiosa ou espiritualista, repito: os mortos também voltam. Mortos circunstanciais, eu diria. Não sei legitimar uma classificação correta para a situação. Tampouco me atrevo a criar um neologismo para tal. O tempo (esse nefando necessário) foi roubando um pouco da criatividade que eu ainda tinha. Já não sei ver carneiro através de caixa.

Os mortos também voltam. Os circunstanciais. Uns voltam rapidamente, outros demoram alguns anos. Já não recordo quanto tempo, exatamente, foi arrastado desde a morte repentina e o retorno mórbido do meu primeiro morto circunstancial. Em um momento sinto como se fossem anos, noutro instante me deparo com a possibilidade de terem sido meses. Os registros, contudo, confirmam: foram anos. As memórias de um escritor tornam-se migalhas em um liquidificador quando as palavras correm de encontro à sua história.

Ex-preso político revela memórias de censura após 5 prisões e reclusão no Canadá, no período da Ditadura Civil-Militar.

Na ocasião da entrevista. Da esquerda para direita: João Guilherme Lopes, o entrevistado Antônio José Medeiros, Raíssa Muniz e Nicácia Carvalho.

Texto escrito por Raíssa Muniz

Entrevista realizada no dia 24/05/14.


No cerne da ditadura civil-militar, o Brasil urrava na dualidade de opressão e resistência.  Muitos locais já são largamente estudados pela historiografia nacional, embora outros permaneçam com pesquisas mais tímidas — conquanto de cunho igualmente grandioso.  O estado do Piauí está incluso no segundo grupo.  Ainda que geograficamente afastado da região que concentrava os conflitos, o Piauí guarda até hoje memórias vivas daquele período.  Como grande exemplo, temos Antônio José Castelo Branco Medeiros, que hoje tem 64 anos e é natural de União – PI.  Na época da opressão, Antônio era solteiro, vivia em Teresina — em uma pensão de estudantes — e cursava Filosofia.  Atualmente, é classificado como professor universitário aposentado, ex-docente da UERJ, doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, ex-vereador de Teresina e ex-deputado estadual e federal do Piauí.  Ademais, longe de falar sobre a censura ditatorial apenas como estudioso ou observador, Antônio traz uma peculiaridade por trás do semblante sereno: é um ex-preso político da ditadura.  Líder de movimentos estudantis e membro de um círculo social esquerdista, foi preso 5 vezes em caráter oficial, embora traga consigo outros tantos episódios de repressão daquele período.

Fui-me embora pra Pasárgada

"Eu tinha uma Pasárgada. Ou costumava ter.
Era guerreira, irremediável águia.
Amiga não só do rei, mas de um povo todo
De nobres, burgueses, diminutos e clérigos

Eu costumava andar de bicicleta
Na mesma rua, todo dia, toda hora
Quando meu maior objetivo era apenas poder ir até a rua ao lado

Eu costumava jogar xadrez
E via a vida com uma percepção que hoje já não tenho
De um jogo entremeado
Tão previsível e curto

Eu costumava me olhar no espelho
Tão resoluta, eu tentava me roubar de mim
E ria
Nunca fui boa ladra

Eu costumava brincar de ser escritora
Uma brincadeira séria, considerada
Nunca esse desrespeito que faço aos 16

Eu costumava ter amigos
Amigos meus, por mim idealizados
Costumava desenhar meus amigos
Escrever para meus amigos
Descrever meus amigos
Ser uma amiga com amigos

Eu costumava falar com Deus
Nunca esperei que me escutasse
Negligente, talvez o carneiro mais desvirtuado que já pastou por aqui

Descobri minha própria fé
Meu próprio amor
Minha própria arte
Meu próprio espelho
Minha própria rua
E meu próprio jogo

Meu xadrez nunca foi bem jogado
Meu espelho nunca foi bem polido
Minha arte nunca foi respeitada
Nem meus amores serão eternos

Fui-me embora pra Pasárgada
Já não sou amiga do Rei
Já não tenho o amor que quero
Na vida que escolherei

Fui-me embora pra Pasárgada
E no paraíso descobri
Que só a vida pode ser vida
Encerro e admito:
Eu adoro essa putrefação"

Raíssa Muniz
25/05/14

Humana demais.



Eu ouvi durante uma noite inteira o capricho de um sono sem sonhos. E pela primeira vez em anos, meus fantasmas noturnos não me assombraram com a mesma magnitude. Mesmo entorpecida, eu acordei com a certeza de que estava cada vez mais viva. Sentia meu coração pulsar. Por brincadeira da mente, Sylvia Plath sussurrava naquele instante: "Eu sou, eu sou, eu sou." Não era a dor que me fazia mais viva. Não era a percepção da inflamação na mão esquerda, tampouco se tratava do meu estômago que continuava a dançar desde a madrugada agitada. Não eram as lembranças de ter um tubo invadindo meu nariz, minha garganta, meu estômago. Não era a raiva, a incapacidade de ter sido saudável o suficiente para responder à altura às enfermeiras que se remexiam como formigas na chuva. Não era a sensação de estar ali, na sala de reanimação, entubada e furada em braços e mãos. Não era nem mesmo o anunciar médico. Foi o choro de quem luta para viver. De quem se agarra aos meios, ao centro do seu ser - e me parece ser muito complicado usar essa metáfora hoje. O centro do meu ser foi invadido e entubado. O coração ainda pulsava, estarrecido. "Eu sou, eu sou, eu sou." Não sei se alguém tinha dormido naquela casa. Nem ao menos conseguia me levantar para constatar. Ouvi, na casa ao lado, cânticos de natal que agradeciam pelo novo dia. E eu, que nunca imaginava a surpresa que a madrugada iria trazer, cantei junto com eles. Eu sou, eu sou, eu sou. Eu quero viver. Eu quero não ser surpreendida, nunca mais, por efeitos colaterais como esse. Eu quero suportar o tratamento. Não por ser forte como um dia eu imaginei ser. Mas por ser demasiadamente humana. Humana de um modo que só o "quase" da vida me trouxe. Eu sou, eu sou, eu sou. Humana, humana, humana.


Raíssa Muniz
20/05/14

Derrame.


Um dos meus maiores defeitos talvez seja a emotividade exagerada. Não sei ver algo de errado sem criticar. Não aprendi a me sentir ofendida e baixar a cabeça. Não sei admirar sem externar. Também não sei desgostar sem demonstrar. Queria eu ser um pouco mais contida e me adaptar ao "desgostar sem machucar", ao "admirar sem assustar". Espero me adaptar às condições - imagina que feio uma pessoa que teima em colecionar desafetos por falar tudo que pensa e assusta quem preza por, certo dia, falar tudo que lhe traz admiração. Eu tento, embora seja tão complicado. Não sei sentir pela metade.

Raíssa Muniz

15 coisas que aprendi com a ONHB.


Como muitos leitores já acompanharam, escrevi sobre a Olimpíada Nacional em História do Brasil uma série de vezes, tendo postado inclusive algo parecido com isso: 50 coisas que aprendi com a ONHB. Agora, com um certo distanciamento temporal da época que participei e fui classificada para a final, em Campinas-SP, trago aqui 15 (não necessariamente) novas coisas que aprendi nesse período.

Entrevista para o blog "Ser Escritora", de Juliana Rodrigues.


Trago hoje mais um link. Dei uma entrevista para o blog "Ser Escritora", da Juliana Rodrigues, de Sumaré-SP. Para acessar a entrevista completa, clique aqui.

A noite é um martírio.



Um dia inteiro de bons momentos se esvai quando a noite chega. Seja ela real ou imaginária, concreta ou metafórica, a noite sempre vem para todo mundo.
Tão verdadeira quanto a realidade de quem crê neste momento, a noite traz a inquietude de dúvidas que crescerão a cada escurecer. Por ser subjetiva – alguns veem a noite como festa – suas consequências também mudam de ser para ser. O fato, contudo, é que ela chega. Invariavelmente, para a criatura de farra e a de suplício, ela surge.

Complexo é quando as duas criaturas – o polo positivo e o negativo – coexistem no mesmo corpo. Confuso é entender que isso acontece com todos, a qualquer momento — a noite, afinal, pode engolir até o mais belo dos dias.
Em “dias de noite”, a festa nem sempre existe. O riso nem sempre é genuíno. A dança nem sempre contagia. Os vícios nem sempre fazem efeito. “Dias de noite” passam. Mais rápido para alguns, é verdade. A solicitude que eles [os dias de noite] invocam é capaz de estorvar qualquer dia completo. A noite é um martírio.

Raíssa Muniz, 12 de janeiro de 2014


(Em uma dessas noites de martírio.)

OBS.: Este texto pode ter várias interpretações, como a maioria dos que eu escrevo. Em geral, este costuma ser o meu "estilo". Escrevo sobre uma coisa usando a maior variedade possível de artifícios que eu conseguir para mascarar o verdadeiro assunto do texto. Não me orgulho disso, pelo contrário: é o único modo que encontrei para escrever para mim.