Eu já não sei dizer adeus.



Eu, ainda criança, conheci um fato maravilhoso sobre a existência humana: os mortos também voltam. Quando menos se espera, sem qualquer sinal de resignação. É uma situação que foge ao nosso controle.


Longe de qualquer conotação religiosa ou espiritualista, repito: os mortos também voltam. Mortos circunstanciais, eu diria. Não sei legitimar uma classificação correta para a situação. Tampouco me atrevo a criar um neologismo para tal. O tempo (esse nefando necessário) foi roubando um pouco da criatividade que eu ainda tinha. Já não sei ver carneiro através de caixa.

Os mortos também voltam. Os circunstanciais. Uns voltam rapidamente, outros demoram alguns anos. Já não recordo quanto tempo, exatamente, foi arrastado desde a morte repentina e o retorno mórbido do meu primeiro morto circunstancial. Em um momento sinto como se fossem anos, noutro instante me deparo com a possibilidade de terem sido meses. Os registros, contudo, confirmam: foram anos. As memórias de um escritor tornam-se migalhas em um liquidificador quando as palavras correm de encontro à sua história.

Eu chorei quando meu morto circunstancial morreu. E continuei chorando nos dias, meses e anos seguintes. Meu luto durou não 7 dias, mas mais de 7 anos.

Ele voltou, algum tempo depois. A voz voltou primeiro. Uma voz distante, que eu já não reconhecia. Desde aquele dia fiquei maravilhada pelo poder do telefone.

Eu tinha pouco mais de 7 anos e um contentamento vivo em receber ligações. Aos poucos, minha alegria se dissipou. Ele não me ligou mais desde o seu retorno telefônico. E eu... Bem, eu sentia todas as minhas cicatrizes se abrirem novamente.

Eu já não conversava pacificamente com Deus. Eu cobrava muito mais do que agradecia. Ia para a igreja e chorava. Chorava todas as vezes. Fazia pedidos, promessas, acordos. Deus teria se orgulhado da menina comportada e estudiosa que fui enquanto fazia aqueles pedidos. Pedidos que, passado algum tempo, nunca foram atendidos. Eu tive que aprender a amar o bom velhinho por outros motivos.

Mas eu cresci. Um pouco diferente das outras crianças, é verdade. Eu escrevia para não me sufocar. Rasgava para não me comprometer. Procurava um meio de sepultar meu morto circunstancial.

O fato é que ele voltou. E foi embora novamente, sem ter me reconhecido quando me reencontrou e antes mesmo de ter me conhecido de verdade.

Aliás, peço espaço para uma correção: os mortos realmente voltam. Mas sempre vão embora.

Difícil encarar que o homem que me ensinou a andar de bicicleta foi o mesmo que me fez entender o que é uma despedida. E que a vida é recheada delas. Eu aprendi muita coisa com o sofrimento. Eu tive vários rompantes de amargura e desespero. Eu passei, sem titubear, muito mais tempo tentando perdoar que cultivando ódio. Eu só não aprendi a dizer adeus.

Talvez eu ainda espere que os mortos circunstanciais retornem. E que nunca mais procurem ir embora.

Raíssa Muniz
02/06/14

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