Corte e costura: de nó, excesso e afeto.

O excesso é a igreja de todos os desistentes. É o confessionário dos que já não temem o pecado porque nele reside a redenção. Não se costuram despedidas sem exageros. A linha única e suficiente para alinhar a vida só dá corda para um novelo. O alfaiate que se dedica ao nó, ao ponto, usa mais que o tubo de linha usual. Não se faz um fim com mesuras. Não se agarra às esperanças com nó frouxo, sem força, sem exagero.

Dói, é verdade. A agulha pica até quem não a manuseia. Dói também para quem provoca a dor sem a intenção. Dói porque é repetição. Um alfaiate que costurou e puxou nós a vida toda daquela forma não consegue desaprender do próprio ofício uma maneira mais delicada. Eu, alfaiate, não sei puxar nós sem excesso. Excesso de linha. Excesso de dor.

É sobre ser a forma de sentir. Sobre não conseguir docilizar e adestrar dor. Mas desses excessos se faz muito. Se tece mais corda. Mais nó.

Eu, que nunca frequentei curso de marinheiro, experimentei de vários nós. Faltou aí o excesso. Excesso de força para o ponto certo. Excesso inclusive de inibição para docilizar a dor agora, que escorre pela tinta do texto. Já vi por menos metáforas um diagnóstico inteiro ser tecido.

O alfaiate sente dor. E vergonha por não saber tecer de outra forma. Enquanto costura, ele também sente receio. O que seria de Fernando Pessoa com seus heterônimos com todos esses doutores em diagnóstico de plantão, ávidos por analisar literatura com o dicionário não do Pasquale, mas do DSM?

A alfaiataria é realmente de um labor desmedido. Poupo os que quebram cabeça para interpretar lacunas: alfaiataria é também lidar com o outro. É corte e costura. Em alguns pontos, excesso de linha. Nó. Desenlace. Do nó ou do afeto.

Raíssa Victória Muniz
26/10/19

Pr(escrever).


Ando precisando assumir a transitoriedade. E preciso compreender que apesar do sentido que demos à ela, tempo curto não é sinônimo de inverdade. Ora feliz, ora cansada, às vezes caio na falácia de esquecer quanta humanidade carrego em minha essência. O que eu quis dizer é que quase sempre me escapa da memória que já conheci o amor, mesmo com a pouca idade, mesmo escutando de cor e salteado que ele só chega na maturidade – e às vezes nem chega. Quão sortuda sou por ter 21 anos e saber que ele existe.  Já fui visitada por ele em momentos espaçados da minha vida, tendo hospedado esse sentimento ora por meses, noutros tempos por anos. Para mim, não é preciso persistir materialmente até hoje para ter sido amor. Foi amor exatamente pelos instantes que ficou. É amor de maneira forte mesmo após ter fechado seu ciclo. Talvez o grande “boom” de muita paz que veio à minha vida foi compreender esse modo de enxergar a vida: não ficou para ser divulgado, muitas vezes não precisa ser alongado em cinco ou dez anos.
Algumas vezes, como picada pela literatura que sou, me pego a confabular sobre o futuro. A veia dramática e o catalisador da metáfora me fazem desesperar ao pensar na vida que muitas vezes digo desejar: morando em um apartamento, provavelmente sozinha, com gatos e possibilidade de escrever meus textos sem perturbação. Gosto muito de ficar sozinha, até porque fui criada em um ambiente onde só existiam – quando existiam – adultos. Precisei aprender a ser minha própria companhia. Apesar de gostar, hoje, depois de muita elaboração, já entendo que talvez essa não seja a única possibilidade que rabisco em minhas linhas. E que se acontecer, não será pelos pingos catastróficos que atribuo à minha personalidade introvertida.
O que venho tentando dizer, afinal, não parte da ordem do compreensível. Há dias andava macerada pela necessidade de escrever, mas não qualquer texto. Precisava escrever sobre amor. Técnica já muito conhecida entre muitos escritores é o de ler tantos outros textos sobre o tema para se inspirar por onde começar. Outra que vai na contramão é a de se privar dessas fontes para tentar extrair algo mais “puro” (embora eu considere impossível, visto que a dialética persegue o escritor). Tentei ambos. Falhei. Nem lendo sobre, nem me privando, consegui elaborar. Já impaciente, decidi sentar em frente ao computador e escrever qualquer coisa. Sem métrica. Sem roteiro. Como, na verdade, sempre fiz. A conclusão não é poética, não tampona nenhuma falta, não faz incomodar menos o que tenho a dizer, mas me orienta: pra escrever não precisa prescrever. Ao que retornamos ao início do texto: pra amar também não.

6 de outubro de 2019




A metamorfose - Franz Kafka (Preciosidades de estante)


Minha opinião sobre o livro:

Ler "A metamorfose", de Franz Kafka, não é acompanhar simplesmente uma história de estranheza e transformação. Tampouco traz um enredo infantil, embora os elementos da narrativa, quando vistos isoladamente, façam assim imaginar. Longe disso, Kafka passa longe das epopeias infantis ao descrever, sob análise sociológica, a coercitividade citada por Durkheim trabalhando de forma metafórica e hiperbólica. O clímax, logo na introdução, mostra um cidadão que acorda com as formas de um inseto (no decorrer do texto o leitor percebe que se trata de uma barata) e que lida com a repugnância familiar mesmo quando ele próprio tenta manter suas atividades rotineiras. Em uma leitura mais ampla, faz lembrar o homem moderno e suas adaptações a um sistema cada vez mais definido. Afinal, foi Gregor (o protagonista) que se transformou em inseto para evitar o trabalho que o oprimia ou foi o trabalho que o oprimia que o fez se transformar em inseto? A metáfora do inseto pode ser perfeitamente analisada como uma mudança indesejada pelo sistema. Acima de tudo, "A metamorfose" explicita que não importa quanta vontade o homem tenha de superar seus obstáculos, mas sim o que ele aparenta e o que produz por consequência de suas aparências.


Sinopse:

A Metamorfose é a mais célebre novela de Franz Kafka e uma das mais importantes de toda a história da literatura. O texto coloca o leitor diante de um caixeiro-viajante - o famoso Gregor Samsa - transformado em inseto monstruoso. A partir daí, a história é narrada com um realismo inesperado que associa o inverossímil e o senso de humor ao que é trágico, grotesco e cruel na condição humana - tudo no estilo transparente e perfeito desse mestre inconfundível da ficção universal. 



#1 - Falida escritora: Ciclos, obsolescências e outros condicionamentos.


Ciclos, obsolescências e outros condicionamentos.

       Conheçam-me simplesmente por Açucena. Se a divulgação de um nome próprio, por si só, lhes for insuficiente para a credibilidade que esperam encontrar, detenham-se em um sobrenome pomposo qualquer. Alvarenga. Castelo Branco. Peixoto. Bragança. Enquanto ditam regras e expectativas acerca de um senhorio qualquer, narro com altivez e, por que não, escarro, as vivências de um tempo que só permutou seus trajes. 
        Sou uma escritora falida. Meus escritos são um amontoado qualquer de palavras que a indústria dos best-sellers não admite. Não sou cotada para entrevistas, tampouco apareço em fotografias com o sorriso resplandecente e palavras de incentivo. Meus dentes, admito, nem mesmo suportariam um sorriso de tão grandioso respaldo. Descobri, já muito tarde, que excesso de café causa o amarelamento das presas. Concluo, não muito satisfeita: fui colaboradora de uma indústria articulada de interesses. Vendem educação para que você possa entender e comprar tudo aquilo que virá depois disso. Vendem livros para que você interiorize ideologias minuciosamente escolhidas por uma literatura comercial. Vendem café para que você se delicie em epopéias alheias madrugada adentro. Vendem tratamentos para clarear o que a cafeína desencadeou em seus dentes. E, juntando tudo isso, vendem o estereótipo de que um leitor se cerca de boa educação, bons livros, bons cafés e bom desenvolvimento intelectual. Quase sempre, o indivíduo citado carrega uma vontade insaciável de vencer na vida e não poupa esforços, dinheiro e dentes amarelos para conseguir chegar em seu objetivo. Quando chega, geralmente agraciado por uma recompensa meritocrática que se concretiza em um bom salário, exprime sua felicidade com um sorriso amarelado e um clássico: "Valeu a pena!" Fechando sua conquista com grande estilo, gasta aquilo que conquistou com sessões intercaladas de clareamento dental e aplicações de botox nas marcas que adquiriu durante o árduo caminho.
           Nós, afinal, somos o que temos. Quase sempre, ao nascer, já temos tudo que precisamos para se ter uma vida confortável: saúde, família, alimentação e amor. Mas quão monótona seria a vida se tudo já fosse conquistado com o nascimento? Não, não estamos realizados depois do primeiro grito ao mundo. Nossa família, como quase todos os outros habitantes do mundo, querem que sejamos felizes. E felicidade, já dizia Calvino, é fruto de trabalho e esforço. "O trabalho dignifica o homem", dizia o referido teólogo. Aprendemos isso ainda na pré-adolescência. O que dizem depois, porém, é que nem todo trabalho pode ser incluído nessa categoria de maravilhas. A sociedade nos ensina que há trabalhos mais dignos do que outros. E embora lutem, gritem e defendam com todos os mecanismos possíveis que somos todos iguais e toda e qualquer profissão é digna de cidadania, algumas simplesmente são menos dignas, perante o sistema, do que outras. Recebem salários menores que outras, muitas vezes trabalhando mais, estudando mais e agindo de forma mais colaborativa em nossa sociedade.
           Eu faço parte desse sistema. Faço parte de todo o fracasso, de toda a involução e de todas as glórias camufladas dessa sociedade. Minha profissão, por exemplo, nem ao menos é oficializada como tal. Ninguém quer saber quantas horas passei na faculdade, quanto tempo passei estudando, de quantos títulos de mestrado, doutorado e livre-docência eu posso ter. O censo não me pergunta quantas pessoas alcancei com meus livros. Em contrapartida, sou questionada sobre minha renda e classificada como "trabalhadora autônoma". Se você, leitor, deseja seguir nessa empreitada de ser escritor, prepare-se para um sacerdócio. Se não dançar conforme a música, sua cadeira é dada a algum outro escrevinhador mais afeito às causas dessa teia comercial. Se abordar qualquer outro tema que não seja o que foi construído, você sofrerá um boicote que já começou antes mesmo de escrever a primeira linha de seu livro. Criticar está fora de discussão. Ouvirá, muito provavelmente de algum editor pernicioso, que os tempos de Carlos Drummond de Andrade ficaram para trás.
        Entretanto, como eu disse logo na introdução deste monólogo: sou uma escritora falida. Dancei conforme o sistema. Escrevi o que queriam ler. Já exibi, quando jovem, meus dentes não tão amarelados em colunas sociais e revistas literárias. Fui, àquele tempo, uma escritora. Sem oficialização da profissão, é verdade, mas escritora. Hoje, enquanto falida, tiro os invólucros do decoro e troco a máquina de datilografar por esse notebook com prazo de validade. Sou parte do sistema. Sou peça do jogo comercial e figurante na obsolescência programada. Embora falida, ainda sou uma escritora. E uso a educação e a erudição que o sistema me empurrou goela abaixo para falar sobre ele. Meu manifesto é puramente metalinguístico.

Açucena

Nota de agradecimento.






Um velhinho lê na revista a entrevista de uma adolescente que sonha em ser oficialmente escritora e quer lançar seu primeiro livro. Observa a página, segundo ele, caducando com seus botões de que a "juventude de hoje" ainda tem gosto por literatura. Na fila para o Imposto de Renda, traz a revista sob o colo e abre novamente na entrevista. Comenta com a contadora sobre a tal escritora. Recebe, com muita surpresa, a notícia de que a "escritora" é, na verdade, filha da contadora que lhe atende. Entusiasmado, quer saber mais sobre. Pergunta sobre o livro, a temática e sobre a própria menina. Solta um "se for do jeito que saiu na revista, com esses óculos, tem cara de inteligente".

Cara de inteligente. Gostei do elogio. Semanas depois, chega o velhinho novamente no escritório. Bate na porta, urgente. "Mas você já declarou seu imposto", explica a contadora, um tanto quanto atarefada. "Minha filha", rebate o senil, "eu vim aqui por outra coisa. Vim aqui trazer esse presente pra você dar pra Raíssa, sua filha escritora. Diga a ela que li seu blog e já sou seu fã."



E assim, depois de recuperada após o relato da mamãe e demais contadores que presenciaram a cena, meu interior pula de alegria. Ganhei meu primeiro fã declarado de 80 anos. De quebra, um presente pra eu me sentir com ar de estrela.



Agradeço, de coração cheio e alma leve.

Att,
Raíssa Muniz