Sofria aventuras tenazes a
cada anoitecer. Se por criatividade ou descuido, pouco sabiam aqueles que
tentavam constatar a causa de tantas crises sucessivas. As pernas, sempre
entreabertas e para cima, viviam a frustrada tentativa de alcançar o céu sem
tocar o teto do quarto. Os olhos eram inseguros, tão distantes quanto um porto
inventado poderia ser naquele instante. Era rosada, muito embora permanecesse
na inconstância de um ou dois toques pálidos por dia. Seus cabelos,
encaracolados apenas nas pontas, traziam tantas lembranças quanto as cartas que
ainda serviam de alimento para seres saprofágicos. Eram caminhos tortuosos,
vias em desobstrução de um passado não tão distante. (E naquele instante,
parecia tão próximo que poderia se fundir ao presente. As lembranças têm um
poder assustador de locomoção. Nem sempre de momentos confortáveis – o aprendizado
consiste na constrição por vias labirínticas.) Tinha olhos amendoados e um
sorriso doce. O toque de suas mãos provocava uma inquieta sensação de ser
transpassado por energias transcendentais. Tinha 4 anos, pernas ainda curtas e
gordas e necessidades ainda em processo de adaptação — como é difícil narrar
instintos corpóreos quando se quer tão efusivamente adentrar no que havia de
mais bonito. Não posso dizer que algum dia tenha passado sem se questionar as
razões que a trouxeram até ali. E como se questionava! Não só a si, mas a todos
em volta.
Seus cabelos eram caminhos
tortuosos, afinal. Seus olhos amendoados começaram a trazer lembranças que
outros olhos âmbar tentavam esquecer. Seu sorriso doce trouxe sensações
esquisitas que os olhos âmbar tentavam entender. Um mal-estar seguido de
confusão e arrependimento. Quem poderia produzir vivências tão máculas sob um
sorriso tão puro? Olhos âmbar produziam.
Se por culpa dos olhos, do
sorriso doce, dos cabelos tortuosos ou das cartas que ainda serviam de alimento
para a saprofagia, pouco poderia saber. Se era indiferente aos sorrisos, às amêndoas,
à constrição por vias labirínticas ou aos papéis que ainda eram consumidos,
pouco conseguia entender. Se trazia não apenas olhos âmbar, mas olhos âmbar que
antecederam os olhos amendoados, com quase nada conseguia lidar. Seu sangue
também corria naquelas pernas ainda curtas e gordas. Seus cabelos, lisos e comportados,
desaprovavam os caminhos tortuosos que aqueles cabelos lhe traziam. Eram vias
em desobstrução de um passado não tão distante, leitor. Eram não apenas
lembranças, mas fatalidades. Advindos de um passado frouxo ou certeiro, pouco
podia saber enquanto ainda tinha 4 anos, pernas ainda curtas e gordas e necessidades
ainda em processo de adaptação. De onde nasceram as amêndoas que povoavam seus
globos oculares, nem olhos âmbar conseguiam recordar.
Por não ter como apagar o
que foi construído antes do toque do seu lápis, tentava reescrever sua história
com rabiscos em lápis de cor e giz de cera. Por não entender nem nunca ter
visto olhos amendoados como os seus, trazia a nítida impressão que também
carregava olhos âmbar — eram os únicos que conhecia, eram os únicos que sabia
pintar. Por não ter culpa — afinal, quem assumiria aquela culpa? — continuava
rindo docemente para toda a imensidão âmbar que se estendia à sua frente. Por
ser fruto do ilícito, inocentemente assumia seus genes aos se envaidecer por
seus cabelos encaracolados como caminhos tortuosos. Por querer tocar o céu,
continuava a jogar as pernas para cima, empalidecendo vez por outra por
complicações respiratórias que os genes amendoados também traziam.
Os olhos âmbar observavam,
enfim. Traziam não apenas lágrimas contidas, mas também uma atenção instigadora
em ler cartas que serviam de alimento para seres saprofágicos. (Se toma pela
atividade da saprofagia os olhos âmbar ou os vermes da gaveta, cabe ao
observador a interpretação.) E chorava, escondia e superava. Não por ter
aprendido a lidar com a saudade dos olhos amendoados que pareciam reviver naqueles
4 anos. E sorria, brincava e abraçava as pernas ainda curtas e gordas. O
perturbador eram as noites, quando as amêndoas escureciam e tomavam as
pálpebras por manto. Os olhos âmbar permaneciam vivos com suas cartas tomadas
por seres saprofágicos. Enfim poderia chorar sem parecer afetada ou cansada por
carregar pernas ainda curtas e gordas sem o amparo de olhos amendoados mais
antigos. Não por fraqueza ou submissão; não por entrega ou martírio.
Por excesso de amor.
17 de julho de 2014.
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