Conto: Carta de Amor



  Então os tão comentados dez anos de casamento finalmente vieram à tona. A manhã surgia calma, ignorando a data especial tal como Ele fizera horas antes. Os passarinhos cantavam alegremente na janela da cozinha, iluminando o dia que seria perfeito para Ela. A ansiedade que emanava através de calor do corpo d’Ele era tão forte como o fogo que crepitava no forno, fritando o peru do tão esperado banquete. A alegria que Ela sentia naquele momento era poderosa e seu coração palpitava tal como o coração d’Ele fazia ao assistir a um jogo de futebol.
  Os passos d’Ele se aproximaram e como de costume, Ele abraçou a esposa por trás, dando-lhe um beijo de bom-dia e voltando-se para a comida, sem falar mais nada. O rosto d’Ela corou e seus olhos atentos fitaram as rosas que cresciam lá fora. O que Ela pensava era que Ele provavelmente estava guardando segredo para uma futura surpresa. Tudo bem. Deixaria assim e arrumaria o desjejum d’Ele.
  O olfato apurado que Ele tinha desde menino se alertou ao sentir o cheiro desconhecido da ave assando no fogo e seus olhos se voltaram para a mulher, com um ar de indagação fora do comum.
  — Sua mãe vem comer aqui hoje? — Perguntou fitando-a.
  Ela sorriu assentindo e voltou-se para o fogão. Como pudera duvidar d’Ele? Aquela pergunta só confirmava que Ele estava tramando algo e queria a presença da sogra para provar como era um bom moço.
  Ele fitou as costas da esposa, ainda sem entender os fatos. Coçou a cabeça e perfurou a ervilha que decorava o café da manhã com o garfo. Pegou uma das colheres que a mulher deixara ali na mesma e virou-a, olhando-se no verso. Como estava velho. Como estava acabado. Como os anos passavam rápido. Os anos...
  Não, Ele não recordou a data especial. Voltou o olhar para cima e tentou procurar motivos na alegria inesperada da esposa. Como ela poderia estar tão feliz com tantas dívidas? Ele desempregado. Ela apenas com bicos que fazia como costureira.  O que seria aquilo então?
  Seus pensamentos atravessavam as montanhas, tentando desviar o foco daquela confusão e ao mesmo tempo achar uma solução para aquilo tudo. Seus passos o carregaram de volta para a cama, onde Ele olhou o calendário com uma apreciação vazia. Dia 31 de Outubro.
  Dia da grande final do circuito de futebol. Dia 31 de Outubro.
 — Ah não, dia 31 de outubro! — Ele exclamou, levando as mãos à cabeça.            Finalmente se recordara. O aniversário de casamento deles. O sonho da vida d’Ela.
 Seu rosto ruborizou-se e seus olhos fitaram o vazio enquanto a imagem era borrada por uma lágrima intrusa que lavava-lhe o rosto suado. Ele esquecera. Não preparara nada. Não tinha dinheiro. Não tinha presente. Nem sequer atenção Ele tinha para dar a ela. Não tinha rosas. Não tinha belas palavras, nem sorrisos galanteadores. Tinha apenas a Si mesmo, e ainda assim fugia do próprio corpo, da própria mente. Perdera a noção de tempo e da realidade. Estava tudo acabado para ele, então. Velho, esquecido, desempregado e abatido. Um pacote e tanto que Ela aguentara por dez anos.
  Seu corpo ergueu-se e Ele se dirigiu ao guarda-roupa deles, abrindo as portas do lado d’Ela em busca de alguma pista. Foi aí que o avistou.



  O batom.

  Aquele batom que custara, na opinião d’Ele, os olhos da cara e que era desnecessário. O batom que desfez a economia do casal e fê-la sacrificar suas lágrimas em cima da mesa do jantar, enquanto Ele reclamava sobre tudo da sua vida, mostrando como ela era arrogante, soberba e descuidada. Sua boca emanava o hálito de bêbado enquanto o álcool realizava o verdadeiro efeito na sua cabeça. Ele abriu a boca por uma última vez naquela noite e disse o que estragou o mês d’Ela:
  — Não adianta. Nenhum batom do mundo vai te deixar linda novamente.     Aquela por quem me apaixonei se perdeu junto com as folhas que cobriam o chão no nosso casamento. Espero que tenha consciência e pare de tirar o nosso sustento investindo em algo irreparável. Tu és feia, não há como mudar isso.
  E Ela deixou a cabeça pender para baixo, enchendo um prato branco com suas lágrimas amargas. Ele caminhou com passos rápidos até a porta e a fechou com ferocidade, trancando-a em seguida e esmagando as plantas que Ela plantara com tanto carinho no jardim.
  Tudo isso por causa de um batom.
  E Ela não desistira. No outro dia, lá estava fazendo o café d’Ele de novo, e na mesinha, o batom estava depositado perto do vaso de flores, junto com uma lista telefônica e o número das suas inúmeras comadres. Venderia o batom e pegaria o dinheiro para comprar comida. Não ligaria mais para si mesma. De quê adiantaria aquilo tudo? Onde estava com a cabeça? Talvez em Marte, ou talvez... Talvez estivesse na vida que poderia ter tido se não tivesse se casado com Ele. E aí tudo estaria diferente.

  Ele continuou a fitar o batom, entristecido. Não achava Ela feia, falara apenas para se sentir superior. Era ruim para seu ego saber que dependia de uma mulher para viver. Era cabra macho, não uma florzinha. Seu lábio inferior pendeu e ele caminhou até o objeto de sua briga. Pegou-o e virou para a cama, onde a colcha branca emanava um cheirinho perfumado que só Ela conseguia deixar lá.
  Suas mãos carregaram o batom até a colcha e começando do lado d’Ele, o recomeço se personificou em forma de palavras.

  “Sabes como eu te amo, minha querida. Não precisa se preocupar com aquelas palavras inúteis que lhe joguei na cara um dia. Não precisa derramar suas preciosas lágrimas por mim. Eu não mereço tanto. Não precisa arrumar a casa com tanto cuidado depois de um sábado a noite só pra horas depois ver ela destruída por um bêbado descontrolado. Não precisa sacrificar seus dedos fazendo costuras para nos sustentar. Não precisa viver como uma escrava. Liberta-te. Viva o que não viveu ainda e sinta o que nunca sentiu comigo. Vou deixar meus passos insanos me levarem para outro rumo. Os mesmos passos que me levaram a bater na porta da tua casa um dia. Os mesmos passos que correram na direção contrária do teu amor e traíram-te com uma sombra desconhecida. Os mesmos passos ingratos que por tantas vezes tiraram o rastro dos teus pés de minha vida. Os mesmos passos que pisaram em cima do teu amor. São esses passos que vão me levar pra longe. Passos arrependidos.
  Não sei o que deu em mim hoje para ter acordado com esse sentimentalismo doentio. Talvez Deus tenha finalmente perfurado minha alma e deixado vazar todas as minhas inseguranças. Talvez teus pedidos tenham sidos atendidos e hoje pode ser o melhor dia de tua vida. E passará ele sem mim. Finalmente se livrará desse homem tirano. Agora tentarei reconstruir a Tua vida. Cairei ao chão como minhas lágrimas estão agora e andarei com meus próprios pés. Peço que não me carregue. É só assim que conhecerei a textura dos espinhos e a picada das formigas que encontrarei pelo caminho. Mas Tu deves descansar. Se eu pudesse construiria um banquinho acolchoado com a textura mais macia para você finalmente encontrar um conforto. Pelo menos o conforto dos pés, já que minha mente insana nunca estruturou a do resto do corpo. O conforto da mente. O conforto da alma.
  Viva. Apenas viva.
  Não peço que esqueças esses dez anos que deixou a vida passar ao meu lado. Minha covardia não deixa eu te pedir isso. Por favor, me promete uma coisa? Não esquece de mim. Lembra dessa minha cara de preguiçoso e fica feliz quando arrumar um homem melhor. Compara minhas ações com a de um cachorro, mas por favor, não esquece. Não esqueça do que vivemos, porque isso te fortificará. Não esquece de quando tínhamos um amor lúcido. Não esquece que eu te amei.”

  Ele terminou a carta de amor e transformou aquele batom, que antes era objeto de fúria, no instrumento do melhor presente que pudera dar a Ela em dez anos. Jogou-o de lado e abriu a janela, pulando para um novo horizonte e prometendo a si mesmo que passaria outros dez anos sofrendo para pagar os seus pecados.

  Ela surgiu no quarto logo depois e com os mesmos olhos atentos, encontrou a carta e a transformou em jóia rara quando borrou as palavras d’Ele com suas lágrimas, cobrindo-se com o último vestígio daquele amor. Seu único e verdadeiro amor.


Raíssa Muniz; 25.11.10

OBS: Sim, o texto ainda contém erros gramaticais. Escrevi o mesmo quando tinha 12 anos (não transferindo os erros para a idade, não entendam dessa forma), ou seja, já se passaram uns bons 2 anos e eu nunca voltei para editar o que coloquei aqui. Perdoem-me por qualquer erro que tenha ficado mais acentuado. 


6 comentários:

  1. Caralho, Muniz. rs Sério, tô sem palavras aqui, texto magnifico esse. Me tocou, serio. Parabens. (:

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  2. Sem palavras... Muito lindo mesmo. Me fez chorar.

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    1. Ow, muito obrigada, Rama. =) "Me fez chorar". Isso é bom ou ruim? =/ hahaha

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  3. e depois vem ela dizer que EU sei escrever... hahaha parabéns =)

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