Odeio a morte (por Andréa Nolli)



Odeio a morte.

Desde a minha formatura, desenvolvi um hábito peculiar. Após cada semana difícil no trabalho ou na vida pessoal, presenteio-me com flores. No começo, meio prepotente, eu só me brindava com a beleza das orquídeas. Difícil manter um orçamento com orquídeas pós momentos difíceis, sendo médica. Todo momento é difícil, todo momento era momento de orquídea. Adaptei o hábito, continuo sempre me brindando com flores lindas, mas, nem sempre orquídeas.
Mas porque flores? Por que não uma roupa? Um acessório? Um bem durável, algo que representasse um investimento e não um gasto?Deixa-me ir mais além para me fazer entender.
Muitas vezes fui questionada sobre os motivos que me fizeram escolher a Medicina como profissão. Pensei bastante, gosto da investigação clínica, dos mistérios do corpo, de ajudar o próximo, de acalentar dores, tudo isso é verdade. Mas, pensando bem, escolhi a medicina porque odeio a morte.
Odeio a morte. E mais feio que o verbo “odiar”, só o substantivo “morte”. Odeio a descoberta de sua existência ter ocorrido em minha infância. Odeio o trilhão de pesadelos com a morte de entes queridos que já tive. Odeio o fato de que sempre acreditei que morreria cedo. Odeio a morte e sua potência, sua invisibilidade, sua capacidade de ser surpreendente e de provocar lágrimas. Odeio a morte e suas interrupções. Não me entendam mal, consigo lidar com a existência dela, consigo preparar um moribundo para enfrentá-la e confortar familiares desesperados para aceitá-la, mas, isso não quer dizer nada, afinal de contas, consegui suportar aulas de matemática e a existência de dobras de gordura em minha barriga por toda uma vida, sem deixar de odiá-las. A tolerância da convivência não modifica o meu ódio.
No começo, eu era bem mais intolerante com a morte. Não tinha espaço para nós duas. Era chegar uma emergência e eu colocava o destino na parede, começava o duelo: Você vai ter que escolher, ou eu ou ela. Eu estava ganhando. Cheia de guidelines, de condutas, de embasamentos para postergar sua chegada. Cheia de artimanhas para impedir que ela tivesse uma brecha corporal para se instalar. Repus potássio, dopamina, ferro. Drenei secreções, líquidos, sangue. Transfundi plaquetas, dosei proteínas, puncionei acessos centrais, e o escambau, mas, não adiantou. A morte é arrogante e não respeita nada disso. Transforma boas condutas em oportunidades de aparecer e dar seu show. Ela era mais forte que eu, tive que admitir.
Hoje eu me rendi,consigo tolerar a morte. Decidi que odiá-la pode suscitar nela a vontade de estar próxima de mim mais cedo, uma vez que ódio e amor andam juntos então, apenas tolero. E eu escolho flores semanais de presente para mim mesma por isso. As flores são belas e vivem a intensidade de sua vida e beleza até que sem me dar satisfação, morrem. Quando chego em casa e sinto o cheiro ressecado de suas pétalas mortas, reflito sobre a minha impotência. Nestes momentos, recordo-me que a morte as vezes ganha. Reflito sobre como não importa regar, cuidar, proteger. Que devo fazer tudo isso com o intuito de permitir que elas vivam bem e não com a expectativa de que elas durem para sempre. Elas vão durar o quanto tiverem que durar, o quanto a morte permitir que elas durem. E os pacientes são como as minhas flores. E é por isso que escolho flores. Não porque odeio a morte, mas, porque amo a vida.

Escrito por Andréa Nolli, em 1/2/2013.

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