#1 - Falida escritora: Ciclos, obsolescências e outros condicionamentos.


Ciclos, obsolescências e outros condicionamentos.

       Conheçam-me simplesmente por Açucena. Se a divulgação de um nome próprio, por si só, lhes for insuficiente para a credibilidade que esperam encontrar, detenham-se em um sobrenome pomposo qualquer. Alvarenga. Castelo Branco. Peixoto. Bragança. Enquanto ditam regras e expectativas acerca de um senhorio qualquer, narro com altivez e, por que não, escarro, as vivências de um tempo que só permutou seus trajes. 
        Sou uma escritora falida. Meus escritos são um amontoado qualquer de palavras que a indústria dos best-sellers não admite. Não sou cotada para entrevistas, tampouco apareço em fotografias com o sorriso resplandecente e palavras de incentivo. Meus dentes, admito, nem mesmo suportariam um sorriso de tão grandioso respaldo. Descobri, já muito tarde, que excesso de café causa o amarelamento das presas. Concluo, não muito satisfeita: fui colaboradora de uma indústria articulada de interesses. Vendem educação para que você possa entender e comprar tudo aquilo que virá depois disso. Vendem livros para que você interiorize ideologias minuciosamente escolhidas por uma literatura comercial. Vendem café para que você se delicie em epopéias alheias madrugada adentro. Vendem tratamentos para clarear o que a cafeína desencadeou em seus dentes. E, juntando tudo isso, vendem o estereótipo de que um leitor se cerca de boa educação, bons livros, bons cafés e bom desenvolvimento intelectual. Quase sempre, o indivíduo citado carrega uma vontade insaciável de vencer na vida e não poupa esforços, dinheiro e dentes amarelos para conseguir chegar em seu objetivo. Quando chega, geralmente agraciado por uma recompensa meritocrática que se concretiza em um bom salário, exprime sua felicidade com um sorriso amarelado e um clássico: "Valeu a pena!" Fechando sua conquista com grande estilo, gasta aquilo que conquistou com sessões intercaladas de clareamento dental e aplicações de botox nas marcas que adquiriu durante o árduo caminho.
           Nós, afinal, somos o que temos. Quase sempre, ao nascer, já temos tudo que precisamos para se ter uma vida confortável: saúde, família, alimentação e amor. Mas quão monótona seria a vida se tudo já fosse conquistado com o nascimento? Não, não estamos realizados depois do primeiro grito ao mundo. Nossa família, como quase todos os outros habitantes do mundo, querem que sejamos felizes. E felicidade, já dizia Calvino, é fruto de trabalho e esforço. "O trabalho dignifica o homem", dizia o referido teólogo. Aprendemos isso ainda na pré-adolescência. O que dizem depois, porém, é que nem todo trabalho pode ser incluído nessa categoria de maravilhas. A sociedade nos ensina que há trabalhos mais dignos do que outros. E embora lutem, gritem e defendam com todos os mecanismos possíveis que somos todos iguais e toda e qualquer profissão é digna de cidadania, algumas simplesmente são menos dignas, perante o sistema, do que outras. Recebem salários menores que outras, muitas vezes trabalhando mais, estudando mais e agindo de forma mais colaborativa em nossa sociedade.
           Eu faço parte desse sistema. Faço parte de todo o fracasso, de toda a involução e de todas as glórias camufladas dessa sociedade. Minha profissão, por exemplo, nem ao menos é oficializada como tal. Ninguém quer saber quantas horas passei na faculdade, quanto tempo passei estudando, de quantos títulos de mestrado, doutorado e livre-docência eu posso ter. O censo não me pergunta quantas pessoas alcancei com meus livros. Em contrapartida, sou questionada sobre minha renda e classificada como "trabalhadora autônoma". Se você, leitor, deseja seguir nessa empreitada de ser escritor, prepare-se para um sacerdócio. Se não dançar conforme a música, sua cadeira é dada a algum outro escrevinhador mais afeito às causas dessa teia comercial. Se abordar qualquer outro tema que não seja o que foi construído, você sofrerá um boicote que já começou antes mesmo de escrever a primeira linha de seu livro. Criticar está fora de discussão. Ouvirá, muito provavelmente de algum editor pernicioso, que os tempos de Carlos Drummond de Andrade ficaram para trás.
        Entretanto, como eu disse logo na introdução deste monólogo: sou uma escritora falida. Dancei conforme o sistema. Escrevi o que queriam ler. Já exibi, quando jovem, meus dentes não tão amarelados em colunas sociais e revistas literárias. Fui, àquele tempo, uma escritora. Sem oficialização da profissão, é verdade, mas escritora. Hoje, enquanto falida, tiro os invólucros do decoro e troco a máquina de datilografar por esse notebook com prazo de validade. Sou parte do sistema. Sou peça do jogo comercial e figurante na obsolescência programada. Embora falida, ainda sou uma escritora. E uso a educação e a erudição que o sistema me empurrou goela abaixo para falar sobre ele. Meu manifesto é puramente metalinguístico.

Açucena