Fui-me embora pra Pasárgada

"Eu tinha uma Pasárgada. Ou costumava ter.
Era guerreira, irremediável águia.
Amiga não só do rei, mas de um povo todo
De nobres, burgueses, diminutos e clérigos

Eu costumava andar de bicicleta
Na mesma rua, todo dia, toda hora
Quando meu maior objetivo era apenas poder ir até a rua ao lado

Eu costumava jogar xadrez
E via a vida com uma percepção que hoje já não tenho
De um jogo entremeado
Tão previsível e curto

Eu costumava me olhar no espelho
Tão resoluta, eu tentava me roubar de mim
E ria
Nunca fui boa ladra

Eu costumava brincar de ser escritora
Uma brincadeira séria, considerada
Nunca esse desrespeito que faço aos 16

Eu costumava ter amigos
Amigos meus, por mim idealizados
Costumava desenhar meus amigos
Escrever para meus amigos
Descrever meus amigos
Ser uma amiga com amigos

Eu costumava falar com Deus
Nunca esperei que me escutasse
Negligente, talvez o carneiro mais desvirtuado que já pastou por aqui

Descobri minha própria fé
Meu próprio amor
Minha própria arte
Meu próprio espelho
Minha própria rua
E meu próprio jogo

Meu xadrez nunca foi bem jogado
Meu espelho nunca foi bem polido
Minha arte nunca foi respeitada
Nem meus amores serão eternos

Fui-me embora pra Pasárgada
Já não sou amiga do Rei
Já não tenho o amor que quero
Na vida que escolherei

Fui-me embora pra Pasárgada
E no paraíso descobri
Que só a vida pode ser vida
Encerro e admito:
Eu adoro essa putrefação"

Raíssa Muniz
25/05/14

Humana demais.



Eu ouvi durante uma noite inteira o capricho de um sono sem sonhos. E pela primeira vez em anos, meus fantasmas noturnos não me assombraram com a mesma magnitude. Mesmo entorpecida, eu acordei com a certeza de que estava cada vez mais viva. Sentia meu coração pulsar. Por brincadeira da mente, Sylvia Plath sussurrava naquele instante: "Eu sou, eu sou, eu sou." Não era a dor que me fazia mais viva. Não era a percepção da inflamação na mão esquerda, tampouco se tratava do meu estômago que continuava a dançar desde a madrugada agitada. Não eram as lembranças de ter um tubo invadindo meu nariz, minha garganta, meu estômago. Não era a raiva, a incapacidade de ter sido saudável o suficiente para responder à altura às enfermeiras que se remexiam como formigas na chuva. Não era a sensação de estar ali, na sala de reanimação, entubada e furada em braços e mãos. Não era nem mesmo o anunciar médico. Foi o choro de quem luta para viver. De quem se agarra aos meios, ao centro do seu ser - e me parece ser muito complicado usar essa metáfora hoje. O centro do meu ser foi invadido e entubado. O coração ainda pulsava, estarrecido. "Eu sou, eu sou, eu sou." Não sei se alguém tinha dormido naquela casa. Nem ao menos conseguia me levantar para constatar. Ouvi, na casa ao lado, cânticos de natal que agradeciam pelo novo dia. E eu, que nunca imaginava a surpresa que a madrugada iria trazer, cantei junto com eles. Eu sou, eu sou, eu sou. Eu quero viver. Eu quero não ser surpreendida, nunca mais, por efeitos colaterais como esse. Eu quero suportar o tratamento. Não por ser forte como um dia eu imaginei ser. Mas por ser demasiadamente humana. Humana de um modo que só o "quase" da vida me trouxe. Eu sou, eu sou, eu sou. Humana, humana, humana.


Raíssa Muniz
20/05/14

Derrame.


Um dos meus maiores defeitos talvez seja a emotividade exagerada. Não sei ver algo de errado sem criticar. Não aprendi a me sentir ofendida e baixar a cabeça. Não sei admirar sem externar. Também não sei desgostar sem demonstrar. Queria eu ser um pouco mais contida e me adaptar ao "desgostar sem machucar", ao "admirar sem assustar". Espero me adaptar às condições - imagina que feio uma pessoa que teima em colecionar desafetos por falar tudo que pensa e assusta quem preza por, certo dia, falar tudo que lhe traz admiração. Eu tento, embora seja tão complicado. Não sei sentir pela metade.

Raíssa Muniz