De repente, você, que sempre regozijou uma saúde invejável, acorda
sobressaltado com batidas ininterruptas que estremecem a sua porta. Antes mesmo
de se por de pé, a porta abre e uma sombra turva é vista de lá. Você, que outrora
gozava de uma visão de águia, esfrega os olhos por não conseguir definir quem
lhe observa do outro lado. A sombra turva, aproximando-se cada vez mais, enfim
se define frente aos seus olhos assustados. É sua esposa. Como não ter
reconhecido aquela que lhe fora sempre tão fiel e amiga? Você não reconhece e
se escandaliza com isso. Reclama aos deuses aquela infelicidade. Vai ao
trabalho, mas evita fitar seus amigos, na aflição de não enxergá-los de longe.
Confuso, esconde sua mais nova fraqueza. Não anda na rua com a mesma segurança,
tampouco sente vontade de entregar-se aos esportes. Teme que a bola venha de
encontro ao seu nariz antes de conseguir distingui-la. Evita saídas com os
amigos e põe-se à margem social. Se não consegue distinguir quem se aproxima,
por que sujeitar-se à vergonha de assumir sua deficiência diante de todos do
seu convívio? Começa a remoer suas angústias a cada anoitecer. Já não reconhece
sua esposa quando a vê de longe; sente-se fraco, impotente e é ferido em sua
dignidade. Esconde sua condição, esforçando-se por demonstrar uma visão
invejável para todos.
Certo dia, não estando suficientemente munido de desculpas, é descoberto
em seus devaneios aflitos. Reconhecem que sua visão já não é mais tão saudável (você
estremece entre as acusações; que horror, que blasfêmia!). “É um mal estar
passageiro”, apressa-se logo a explicar, envergonhado, amuando-se. Fazem a
temida recomendação: “Você precisa ir ao médico!” De repente, o chão se abre
sob seus pés. “Ir ao médico? Não sou cego! Ainda enxergo!” Defende-se entre
unhas e dentes. “Blasfêmia! Acusações sem fundamento!” Você se revolta. Não
conhece ninguém que precisou ir ao oftalmologista; apenas os cegos vão. Não se
equipararia a essa classe, ainda tem domínio sob sua visão, mesmo que
imperfeita.
Por fim, é vencido pelo próprio sofrimento. Já não enxerga como antes e
teme que realmente seja visitado pela cegueira. Sorrateiramente, esconde-se de
seus amigos enquanto marca a consulta com o oftalmologista. Poupa-se das chacotas,
evita o preconceito. Seus amigos certamente iriam rir da sua ida ao médico dos
cegos, apontariam o indicador rente ao seu nariz. Mas já está feito, a consulta
já está marcada.
Chega o grande dia. Você se prepara para visitar o primeiro oftalmologista
da sua vida. Fantasia que tipo de místico encontrará do outro lado. Lembra-se
do que cresceu ouvindo: de tanto cuidarem dos cegos, os próprios médicos
perdiam a visão. Entra no consultório, cabisbaixo. Sente-se errado demais por
estar ali. Responde quando é perguntado, confessa-lhe as mazelas, é examinado e
espera entristecido pelo ultimato. Os dedos do médico dançam pelo teclado. Seu
coração acelera. Ele abre a boca, por fim: “Você vai ter que usar óculos”.
“Óculos?! Que vergonha!” Todo o seu ser se afunda em tristeza. Sai do
consultório tristíssimo enquanto carrega sua receita. Fora diagnosticado com
miopia. Terá que tratar-se ainda por um bom tempo, quem sabe até pela vida
inteira.
Compra seus óculos, vencido. Passa a ver tudo com mais nitidez. Com o
melhoramento da visão, descobre que pessoas próximas também usam seus pares de
óculos quando estão longe, mas retiram ao menor sinal de aproximação. Algumas,
que você sempre julgou os poços da saúde, usam lentes de contato. Lentes de
contato! Todo esse tempo grande parte da população ia e vinha entre
consultórios oftalmológicos.
Nas festas e encontros sociais,
poucos assumem os óculos que têm. Usar óculos é um defeito que não é perpetuado
na exuberância das noites. É feio, é vulgar, não combina com a vibe. Toda sua
vida parece se abrir para uma nova descoberta: de cego e louco, todo mundo tem
um pouco.
Felizmente, nossa sociedade já traz uma aceitação maior para quem usa
óculos. Existem armações para cada ocasião, mil e uma tecnologias que tornam
sua deficiência visual mais branda. O oftalmologista não é visto com tantos
dogmas, nem você cogita deixar o trabalho se perceber uma falha na visão.
Por questões de estilo, os nomes foram trocados. Esse tempo todo a “miopia”
era a depressão. A “cegueira” era a loucura e o “médico místico” era o
psiquiatra. Quando tomados pela depressão, demoramos até notar que mesmo nossas
paixões tornam-se indefinidas sob a turva presença dessa doença. Tememos a
opinião dos que nos circundam, a impotência e a vergonha enchem o nosso peito.
Somos fracos diante do preconceito. Pedir ajuda é de um esforço sem igual. Psiquiatras
são, para nós, médicos de loucos que também foram tomados pela loucura. A
medicação e a terapia tornam-se uma vergonha, um fardo que tentamos esconder
demonstrando extroversão ou introversão em demasia. Aos poucos, percebemos que
isso é mais comum do que poderíamos imaginar.
Muitos dos que nos rodeiam usam medicação, fazem terapia e sofrem nas
mãos da mesma condição. Infelizmente, ainda existem muitos tabus que impedem
que assumamos nossa situação, dando assim o primeiro passo para a melhora. Como
a miopia, depressão tem tratamento e deve ser acompanhada por profissionais.
Não é errado precisar de óculos. Precisar de tratamento psiquiátrico e
psicológico também não deveria ser.
Raíssa Muniz
17 de agosto de 2014.
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